A MÃO QUE BATE O MARTELO

Antes de iniciar o texto, quero dizer que ele se destina ao público leigo: pessoas não formadas em ciências jurídicas (direito), e que, por isso, não entendem bem o que está acontecendo nos últimos dias, mais especificamente em relação à prisão do deputado federal Daniel Silveira, do Rio de Janeiro. Aqueles que, a despeito de sua formação jurídica, conseguem defender o ato arbitrário de nossa maior corte do país contra a liberdade de expressão, sinto informar-lhes, esse texto não é para vocês, que chancelam essa “aberratio juris” por analfabetismo funcional ou por mau-caratismo mesmo. Ou ambos.

 

Vamos ao título do texto. É creditada ao proeminente presidente norte-americano Abraham Lincoln a seguinte frase: “A mão que embala o berço governa o mundo”. A sentença busca defender a ideia de que quem cuida das crianças tem muita influência sobre aqueles que serão o futuro do mundo. Assim sendo, podemos ter nessa lista inclusos: a mãe, o pai, a babá, a avó, o avô etc., enfim, quem quer que cuide de uma criança desde tenra idade.

 

Vamos ao contexto do que aconteceu. A semana teve início com uma discussão indireta entre Edson Fachin, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), e o general Villas Bôas, que publicou um livro no qual afirma que mandara um recado ao Supremo sobre a possível soltura do ex-presidente e ex-presidiário Lula, quando do julgamento de “habeas corpus” deste pela corte. O ministro se manifestou publicamente afirmando que tal pressão era “inaceitável”. O general ironizou a indignação de Fachin em um tuíte-resposta: “Três anos depois”.

 

O deputado federal pelo PSL do Rio de Janeiro, Daniel Silveira, postou em suas redes sociais um vídeo na mesma segunda-feira, com quase 20 minutos de duração. No vídeo, o parlamentar, em tom agressivo, expõe seu ponto de vista sobre a discussão entre o ministro e o general. Não se limitando a atacar o posicionamento de membros do STF, ele profere diversas agressões verbais aos mesmos. Ele ainda cita a medida do Ato Institucional Nº 5 (o AI-5, medida mais dura tomada pelo governo militar contra seus opositores, em 1968). Mas o caso do vídeo do parlamentar deveria ser levado à jurisdição pertinente, a saber, a Comissão de Ética da Câmara dos Deputados, que analisaria pormenorizadamente o conteúdo do vídeo e decidiria sobre o futuro do mandato do deputado.

 

No final da noite de terça-feira, 16/02, o ministro Alexandre de Moraes expediu um “mandado de prisão em flagrante” contra o parlamentar fluminense por conta do conteúdo ofensivo do vídeo. Usei aspas porque não há tal instrumento jurídico. Se há flagrante, não há necessidade de mandado; se, por outro lado, houve um mandado, não houve flagrante. E como justifica o ministro o flagrante para tal medida? Afirma que o vídeo em circulação nas redes sociais é uma continuidade do crime. Essa é outro elemento estranho às leis de nosso país: um vídeo em circulação poder ser usado como flagrante para algum crime cometido.

 

Mas as inovações não param por aí. A decisão foi monocrática (tomada por um só ministro) de ofício (ele tomou sem ser provocado por nenhum pedido de alguém ou de alguma instituição). O juiz pode tomar essa medida? De acordo com o artigo 311 do Código de Processo Penal (CPP), pode, mas tem de ser no curso da ação penal. E qual é a ação penal, no caso? O Inquérito das Fake News, instaurado em março de 2019. O mesmo que fora denominado pelo ministro Marco Aurélio Mello como o “inquérito do fim do mundo”, dada sua anomalia jurídica, em que o STF é, ao mesmo tempo, as três partes: a parte ofendida, a parte acusadora e a parte julgadora. Você tem noção do que é isso? Se o inquérito é, por si só, impensável juridicamente, a decisão de prisão em flagrante – interpretando para muito além do que é ser flagrante –, não deveria ser nula?

 

É interessante lembrar que o tal inquérito das “fake news” foi instaurado para investigar ataques a membros do STF com base no artigo 43 do regimento interno da corte. O nó jurídico é que o aludido artigo fala de fatos ocorridos nas dependências do STF, não fora dele. O que fizeram o ministros para darem legalidade ao referido inquérito? Alargaram o conceito de “dependências do STF”, chegando a classificar a rede mundial de computadores (internet) como tal, já que o site do Supremo está disponível e pode ser acessado por qualquer um, assim possibilitando a punição a quem ataque qualquer membro da corte na internet.

 

Voltando ao “mandado de prisão em flagrante” do deputado. Além do inquérito das “fake news”, o ministro Moraes embasou sua decisão citando o artigos 5º, inciso XLIV; o artigo 34, incisos III e IV, e o artigo 60, parágrafo 4º da Constituição Federal de 1988; e os artigos 17, 18, 22, incisos I e IV, 23, incisos I, II e IV e 26 da Lei de Segurança Nacional (Lei 7.170/73). Para que não coloque aqui todo o conteúdo desses dispositivos legais, e por economia de espaço, os crimes aludidos, em suma, são de agitação e incitação ao conflito institucional no discurso do parlamentar. Veja e reveja com muita atenção o vídeo do deputado. Você vai ver uma enxurrada de palavrões e ofensas, e até se chocar com muitas delas, já que não se espera tal atitude de um representante popular, mas, a meu ver, não tem nenhum conteúdo que se encaixe no que o ministro determinou como criminoso passível de prisão.

 

Uma pergunta simples para contestar a caracterização das palavras proferidas por Daniel Silveira como sendo criminosas: O deputado tem o poder político para levar as Forças Armadas a se colocarem contra o STF? (Artigos 17, 18, 22, incisos I e IV, e 23, incisos I, II e IV). Creio que a resposta seja não. No vídeo, vemos alguém alterado e bastante ofensivo verbalmente, mas não alguém que tivesse poder político e militar para causar perigo institucional ao STF. Sequer ao Estado democrático de direito, tão alardeado pelos componentes do Supremo. O que poderia ser imputado ao deputado pelo conteúdo do vídeo seria o crime de calúnia e difamação, no caso, aos ministros citados pelo parlamentar, conforme preceitua o artigo 60 da Lei de Segurança Nacional. Mas isso poderia ser resolvido por meio de uma representação na justiça contra o deputado, utilizando nosso Código Penal, que pune crimes contra a honra (artigos 138, 139 e 140).

 

Vale dizer que a lei usada para justificar boa parte da prisão é herança do período militar. E se o presidente da República ousasse utilizar o referido diploma legal com vistas à prisão de quem o difama, chamando-o de “fascista” e “genocida”? Não são poucos os que fazem isso, diga-se de passagem.

 

Ah, e a imunidade parlamentar? Pois é, imaginem vocês que a tal garantia constitucional foi colocada na Carta Magna de 1988 como garantia para que os parlamentares (deputados e senadores) pudessem exprimir seus pontos de vista, sendo civil e penalmente invioláveis. Em outras palavras, um congressista não pode ser penalizado na lei civil ou na lei penal por quaisquer opiniões, palavras e votos, conforme artigo 53 da referida Lei. Pelo visto, a imunidade parlamentar não é absoluta. O deputado errou, e muito, na forma como se expressou, mas daí ao seu ato ser enquadrado como crime passível de prisão por crime dito inafiançável – e nem crime inafiançável é, como já demonstrado –, já que as prisões preventivas sem requerimento do MP ou polícia legislativas foram dadas como impossíveis pela Segunda Turma do Supremo, é algo que carece do mínimo lógico, uma vez que juridicamente não tem como sustentar tal medida restritiva de liberdade.

 

Se bem que depende muito de quem fala. Vou demonstrar com alguns exemplos a seguir. Lula, em conversa com a então presidente Dilma, chamou o Supremo de “acovardado”. Sobre o STF, José Dirceu disse que “deveria tirar todos os poderes do Supremo e ser só Corte Constitucional”; ele disse ainda que o “Judiciário não é poder da República. Ele é um órgão, mas se transformou em um quarto poder. Se o Judiciário assume poderes do executivo e do legislativo caminhamos para o autoritarismo”. Vadih Damus, ex-presidente da OAB, disse: “Nós temos de redesenhar o Poder Judiciário e o papel do Supremo Tribunal Federal. Tem de fechar o Supremo Tribunal Federal. Nós temos de criar uma Corte Constitucional de guarda exclusiva da Constituição e os seus membros detentores de mandato. Nós temos de evitar que gente como [o ministro] Roberto Barroso tenha o poder de ditar os rumos do processo eleitoral, de ditar os rumos da escolha popular, de ditar os rumos da democracia brasileira”. E teve também o Movimento Sem Terra (MST), que pichou a fachada do prédio onde a ministra Cármen Lúcia tem um apartamento, em Belo Horizonte, em protesto à manutenção da prisão de Lula pelo STF. Alguém aí sabe de alguma medida judicial do Supremo contra algum desses casos?

 

Não custa rememorar que não são poucos os casos de pessoas acusadas de crimes realmente graves, como corrupção, por exemplo, mas que foram soltas graças a “habeas corpus” concedidos pelo Supremo. Até parece que a corte não tem casos realmente urgentes para julgar. Não se vê a mesma veemência do STF com relação a quem realmente ameaça a ordem democrática e ataca a corte, como vimos nos exemplos acima. Dá ânsia de vômito em qualquer um que assista aos discursos de deputados da extrema-esquerda supostamente em defesa da democracia, quando suas ideologias atentam contra qualquer regime democrático, vide países que adotaram o socialismo e no que isso redundou para seus cidadãos. Pior: ver uma deputada petista citar Ulisses Guimarães para referendar seu posicionamento no voto foi asqueroso, foi igualmente asqueroso, pois é de conhecimento de todos a hostilidade de integrantes do partido ao falecido deputado federal do PMDB.

 

Ao ratificar a decisão do STF de prender o deputado Daniel Silveira, a Câmara deu um claro sinal de que a imunidade parlamentar está submetida ao crivo do que for determinado pelo STF. Se algum membro desta corte achar-se ofendido pelo que proferiu algum congressista, este pode sofrer as penalidades que lhe forem imputadas, e ainda com as bênçãos dos demais parlamentares. É a mais perigosa das relativizações: a da liberdade de expressão. Que deve ter seus limites delimitados pelo bom senso, mas nunca pelo que alguém que se ache no direito de fazê-lo sem embasamento legal algum determine. Mas lembremos o que é “imunidade parlamentar”, uma garantia para que qualquer representante do povo possa se expressar, sem medo de sofrer cerceamento. Até onde pode ir o STF em suas medidas?

 

Voltando ao título: a mão que bate o martelo. Será que estamos vivendo uma “juristocracia” (governo do poder judiciário)? Duas falas nos deixam em alerta. A primeira foi proferida pelo ministro Dias Toffoli, que disse: “Nós, enquanto Judiciário, enquanto Suprema Corte, somos editores de um país inteiro, de uma nação inteira, de um povo inteiro”. As palavras foram ditas quando de seu voto com relação ao “inquérito das fake news”, afirmando que o Judiciário existe para “dirimir conflitos”. Outro pronunciamento foi do ministro Gilmar Mendes, que, sobre a eleição das presidências da Câmara e do Senado, falou o seguinte: “Que nos dediquemos à nossa tarefa de governar e governar bem”. Como assim, “nos dediquemos”? O Judiciário também governa?

 

Não podemos esquecer como o Supremo tem se intrometido em ações concernentes ao Poder Executivo. Quer exemplos? A escolha do diretor da Polícia Federal, Alexandre Ramagem, que teve sua nomeação suspensa por Alexandre de Moraes, em abril de 2020. A escolha, que cabe ao presidente da República, foi questionada pelo STF. Partidos da oposição, principalmente de viés esquerdista, têm ido ao Supremo para tentar barrar diversas medidas adotadas pelo Executivo. Outro episódio foi a determinação pela alta corte de que as medidas adotadas para lidar com a pandemia ficassem a cargo de municípios e estados, impedido ações diretas da presidência no que concerne a medidas restritivas e outras. A decisão estabeleceu que estados e municípios têm poder para determinar regras de isolamento, quarentena e restrição de transporte e trânsito em rodovias em razão da epidemia do coronavírus.

 

O STF tem sido bastante incisivo com os apoiadores do presidente: são investigações de publicações supostamente antidemocráticas, buscas e apreensões e até prisões de bolsonaristas. Assim aconteceu com os mais famosos deles: a ativista Sara Winter e o jornalista Oswaldo Eustáquio. Ambos estão em prisão domiciliar com tornozeleira eletrônica. A primeira teve sua prisão decretada por protestar na frente da corte soltando rojões. O segundo, por publicar reportagens envolvendo ministros do Supremo.

 

Se estamos em um Estado democrático de direito, temos de respeitar a decisão das urnas – mesmo que esta não nos agrade – e ter segurança jurídica. Mas o que parece é que o que mais temos de seguro é uma insegurança jurídica. Vide os posicionamentos do próprio Supremo sendo modificados com pouquíssimo espaço de tempo. A impressão que temos vivido é a de que ninguém pode mais criticar os membros do Supremo, que, caso se sintam ofendidos, podem tomar medidas restritivas de liberdade contra os pretensos ofensores.  Se vale o alerta, aqui o darei: quando o lobo devorar todos cordeirinhos rebeldes, a quem ele irá devorar?

 

Finalizo com a advertência do célebre jurista Rui Barbosa, que disse que “a pior ditadura é a ditadura do Poder Judiciário. Contra ela, não há a quem recorrer”. Nossos ministros devem se ater à Lei que juraram guardar, a Constituição Federal. Caso sofram ofensas e ataques pessoais, há lei para tal, sem precisar extrapolar os limites legais de nosso ordenamento jurídico, criando tipos penais e outros elementos estranhos a ele. Lembrem-se de que vossas excelências estão em um alto posto indicados por representantes do povo por seu “notório saber jurídico”, mas que quem deve governar é quem foi escolhido nas urnas para tal.

 

O que aqui expus enquanto cidadão, o fiz lastreado por fatos amplamente divulgados pela mídia, conforme links que podem ser consultados abaixo.

 

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Links consultados:

Fachin rebate Villas Bôas [https://www.poder360.com.br/justica/fachin-rebate-ex-general-e-diz-que-pressao-sobre-judiciario-e-intoleravel/]

Villas Bôas ironiza Fachin [https://cultura.uol.com.br/noticias/16658_general-villas-boas-rebate-posicionamento-de-fachin-tres-anos-depois.html]

Video do deputado Daniel Silveira [https://radiojornal.ne10.uol.com.br/noticia/2021/02/17/video-com-ofensas-e-ameacas-motivou-prisao-de-deputado-bolsonarista-daniel-silveira-204228]

Prisão preventiva decretada de ofício pelo juiz [https://pedromaganem.jusbrasil.com.br/artigos/402380579/o-juiz-pode-decretar-uma-prisao-preventiva-de-oficio]

O caso e situação do deputado Daniel [https://www.cnnbrasil.com.br/politica/2021/02/17/entenda-a-situacao-do-deputado-daniel-silveira-em-10-perguntas-e-respostas]

Decisão da prisão do deputado [http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/INQ4781FLAGRANTEDELITODECISAO.pdf]

O inquérito do fim do mundo, segundo Marco Aurélio Mello [https://noticias.r7.com/brasil/e-um-inquerito-do-fim-do-mundo-diz-ministro-marco-aurelio-18062020]

Interpretação de Barroso sobre “dependências” do STF [https://www.cnnbrasil.com.br/politica/2020/06/17/barroso-vota-pela-manutencao-do-inquerito-das-fake-news-placar-esta-em-3-x-0]

Lei de Segurança Nacional [http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7170.htm]

Lula chama STF de “acovardado” [https://oglobo.globo.com/brasil/lula-disse-dilma-que-stf-esta-acovardado-18893256]

Lula, Dirceu e Damus atacam STF [https://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2018-10-23/lula-dirceu-damous-stf.html]

Impossibilidade de prisão preventiva [http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=452951&ori=1]

MST picha prédio de Cármen Lúcia [https://www.gazetadopovo.com.br/politica/republica/mst-e-levante-popular-picham-predio-de-carmen-lucia-com-tinta-vermelha-d0gjalb7aobbayqs1tc766awf/]

Gilmar Mendes é o que mais concede “habeas corpus” [https://noticias.r7.com/brasil/gilmar-mendes-e-o-ministro-do-stf-que-concede-mais-habeas-corpus-06012020]

Toffoli e o Judiciário como “editor” [https://www.poder360.com.br/justica/stf-atua-como-editor-da-sociedade-no-inquerito-das-fake-news-diz-toffoli/]

Mendes e a “tarefa de governar bem” [https://gazetabrasil.com.br/politica/gilmar-mendes-que-nos-dediquemos-a-nossa-tarefa-de-governar-e-governar-bem-assista/]

STF suspende nomeação de diretor da PF [http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=442298&ori=1]

Autonomia de estados e municípios para lidar com a pandemia [https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/04/15/maioria-do-supremo-vota-a-favor-de-que-estados-e-municipios-editem-normas-sobre-isolamento.ghtml]

Prisão de Sara Winter [https://www.bbc.com/portuguese/brasil-53058547]

Prisão de Oswaldo Eustáquio [https://correiodoestado.com.br/politica/defesa-diz-que-jornalista-bolsonarista-e-preso-politico-e-vitima-de-censura/373908]

José Valdemir Alves

José Valdemir Alves

TREZE ALERTAS

(Por: José Valdemir Alves) O presente texto é para você, eleitor(a) que não gosta de Lula e de Bolsonaro, que