“De Itaquera pra atual universidade número um do Japão! Me formando de kimono e afro”, escreveu a jovem acadêmica Mari Melo, de 29 anos, na noite de 25 de março. Na manhã seguinte, ela despertou com milhares de notificações no Twitter e Instagram. No Facebook, sua foto foi compartilhada por diversas páginas e viralizou.
“Quem é essa gente toda aqui?”, brincou ela, surpresa com a repercussão. Surpresa, mas feliz.
Marina de Melo do Nascimento concluiu o mestrado na Universidade de Tohoku, uma das mais antigas e prestigiadas do Japão. Foi a oportunidade que teve de vestir o “hakama”, um traje tradicional japonês utilizado para cerimônias especiais. Ao modelo com saia de pregas pink e mangas num tom de lilás, a acadêmica adicionou flores amarelas para adornar o cabelo afro.
O hakama foi feito para facilitar o movimento, permitindo pular e fugir dos inimigos e utilizar a espada.
“As primeiras estudantes japonesas emprestaram dos seus irmãos a vestimenta para que pudessem frequentar a escola da mesma maneira que eles, de forma livre”, ela contextualizou, no Twitter. “O hakama é uma conquista feminina, que celebra a possibilidade de movimentar o corpo, estudar e se colocar em pé de igualdade aos homens.”
Paulistana, Marina nasceu e cresceu em Itaquera, na zona leste de São Paulo, até os 15 anos. Morou em uma casa simples em uma favela, ao lado de um lixão. Depois, mudou-se para o distrito da Vila Carrão, também na zona leste da cidade. Foi ali que ela passou a se interessar por língua japonesa.
Nos arredores onde a família de Marina vivia na Vila Carrão, viviam muitos imigrantes e descendentes de Okinawa, a menor e mais meridional ilha do arquipélago japonês. À época adolescente, ela cultivou interesse por desenhos e quadrinhos nipônicos como uma válvula de escape para a realidade paulistana periférica que vivia.
“Era divertido e me distraía do dia a dia”, diz à BBC News Brasil.
Mari Melo cresceu em uma casa simples em uma favela ao lado de um lixão em Itaquera — Foto: Arquivo pessoal
Graças a uma bolsa de estudos por desempenho, ela estudou em um colégio particular. À parte, estudava inglês por conta própria e, a certo ponto, decidiu procurar um curso de japonês. Na capital paulista, que abriga a maior colônia japonesa do mundo fora do Japão, com cerca de 325 mil pessoas segundo os últimos dados disponíveis, ela encontrou apenas um curso na zona leste. Aos 17 anos, tentou se inscrever.
Mari Melo, historiadora paulistana de Itaquera, se formou na Universidade de Tohoku, uma das mais antigas e prestigiadas do Japão — Foto: Arquivo pessoal
“Fui fazer a matrícula e me perguntaram: ‘Ah, você é descendente?’ Não, respondi. E eles disseram: ‘Ah, mas então por que você quer estudar japonês? Infelizmente, não vai ter vaga para você, não. Melhor dar a vaga para alguém que vai aprender e usar a língua japonesa, você não vai’. Saí chorando de lá”, lembra ela, visivelmente emocionada.
De Itaquera para a USP
Em 2010, a estudante passou no vestibular para o curso de letras na Universidade de São Paulo (USP). Na hora de escolher a língua na qual gostaria de se especializar, não teve dúvidas: japonês. “Pela primeira vez, ninguém me questionou ‘por que japonês?’ Foi um momento incrível”, conta.
Marina conta que nunca passou situação crítica ou constrangedora por ser negra e estrangeira no Japão — Foto: Arquivo pessoal
Aos 21 anos, Marina passou em um processo seletivo para intercâmbio na Universidade de Mie, entre 2013 e 2014. Foi a primeira vez que viajou de avião.
“Nunca imaginaria que, um dia, estaria no Japão. Até então, o máximo, o mais distante que tinha conseguido ir foi a USP”, lembra.
Literalmente, ela frisa: não viajava e transitava principalmente pela zona leste, logo foi um salto para o campus Cidade Universitária e, depois, para o campus de Tsu, na província japonesa de Mie.
“Minha mãe dizia: estudo é a única coisa que nós, pobres, conseguimos e que ninguém pode tirar. É o que leva a gente longe”, relata. “Você pode encontrar gente que olha torto, mas você não pode ficar com medo de sair pelo mundo. Medo de preconceito? Estou preparada, calejada.”
De volta a São Paulo após a conclusão do intercâmbio, Marina se formou bacharel em letras, com habilitações em português e japonês, e licenciatura em português. Fez traduções e desenvolveu estudos sobre mangás (quadrinhos japoneses), cultura pop japonesa no contexto da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). No Brasil, estudou estereótipos femininos no mangá de estilo Shōjo, voltado ao público feminino adolescente.
Depois da faculdade, foi trabalhar em uma associação cultural nikkei de Osasco. Nikkei quer dizer descendentes de japoneses nascidos fora do Japão. “Fui a primeira não-nikkei ali”, diz ela, que é descendente de indígenas e negros.
Da USP para Tohoku
Mari e seu marido Júlio se dedicam aos estudos da cultura e língua japonesa — Foto: Arquivo pessoal
Marina se casou com Júlio César da Silva do Nascimento, 29, também graduado em letras na USP, também intercambista entre 2013 e 2014. Ele foi o primeiro de sua família a fazer faculdade.
Júlio conquistou uma bolsa de estudos do Ministério da Educação, Cultura, Esportes, Ciência e Tecnologia do Japão (Mext) para o programa de pós-graduação em Estudos Japoneses Globais na Universidade de Tohoku. Ele se mudou para a cidade de Sendai, a capital da província de Miyagi, em abril de 2018. Ela, que também queria voltar a viver no Japão, escreveu a um professor, possível orientador para a pesquisa acadêmica que gostaria de realizar.
O professor a aceitou como aluna ouvinte, o que lhe permitiu pedir o visto japonês. Ao longo de meses, organizou documentos, economizou R$ 5 mil e comprou a passagem, só de ida. Depois de um semestre como ouvinte, Marina passou no processo seletivo para o mestrado no programa de Estudos Japoneses Contemporâneos da Universidade de Tohoku, por coincidência, o primeiro campus do arquipélago a aceitar inscrições de estudantes estrangeiros e do sexo feminino, em 1913.
Marina conta que nunca passou situação crítica ou constrangedora por ser negra e estrangeira no Japão. Passou a dar aulas de inglês em um tipo de cursinho pré-vestibular à noite e aulas de japonês para crianças, filhos de dekasseguis (descendentes de japoneses que migram para trabalhar temporariamente no país).
Na universidade, propôs uma pesquisa sobre feminismo japonês no século 19. “O tchan”, diz ela, “foi o foco na autora Kishida Toshiko [1863-1901], uma das primeiras feministas japonesas.”
A mestranda traduziu e analisou textos de Kishida, de Kyoto, engajada na defesa da igualdade de gênero, inclusão e independência de mulheres diante dos homens no Japão. Em 1883, depois de realizar um discurso público sobre a condição feminina, intitulado Daughters in boxes, Kishida foi presa, julgada e multada por fazer uma manifestação política sem autorização.
“Ela era questionadora, fazia perguntas: ‘Mas quem determinou essas regras?’, ‘Quem disse que deve ser assim?’ Tem um alinhamento forte com a teoria feminista atual, que não diz o que a gente deve ser, mas procurar pontos de interseccionalidade. Que mulher”, diz.
Mais recentemente, Marina lançou os quadrinhos The bride of the fox, que contam a história de Nubia, a primogênita do rei de um remoto arquipélago, um romance que também perpassa questões femininas. Tímida, ela conta que ficou surpresa com a repercussão de sua história na internet e pretende emendar um doutorado. “Sempre quis ser professora, para fazer a diferença.”
“Nos últimos dias, conversamos sobre o que significa estar neste momento. Educação não deve ser uma questão só de conquista individual, mas ter um impacto para motivar as pessoas a seguirem os estudos”, diz Júlio, que já trabalhou com alfabetização de moradores de rua e jovens saindo da Fundação Casa, instituição para menores infratores.
“Nós enfrentamos tantas dificuldades para estar aqui, estudar aqui. É fantástico que as pessoas olhem para alguém [como Marina] e pensem: é possível, estudar te leva longe.”