O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, reconheceu formalmente neste sábado (24) que foi um genocídio os assassinatos em massa sofridos pelo povo armênio no início do século XX pelas mãos do Império Otomano.
Com a medida, anunciada exatamente no dia em que se relembra os 106 anos do início dos massacres, Biden atende a uma reivindicação histórica da Armênia — ex-república soviética localizada no Cáucaso que tem uma grande comunidade nos Estados Unidos.
Massacre de armênios: o que foi
O Império Otomano é acusado de ter cometido genocídio contra o povo armênio a partir de 1915, com matanças e deportações em massa de integrantes dessa população que viviam no leste da região da Anatólia — região correspondente hoje às fronteiras da Turquia com os países do Cáucaso.
Após o fim da Primeira Guerra Mundial, em 1918, o derrotado Império Otomano começou a se desfazer até finalmente, em 1922, a atual Turquia declarar independência e se tornar sucessora do antigo império. Entretanto, há relatos de que a violência contra a minoria armênia no território tenha continuado depois disso.
O número de mortos nos massacres, segundo a Armênia e aliados, chega a 1,5 milhão. A Turquia, porém, nega que tenha havido genocídio e afirma que esse total não corresponde à realidade. O governo turco também aponta que diversas das mortes ocorreram em contexto de guerra civil (leia mais adiante sobre o impasse entre EUA e Turquia).
Oficialmente, o Brasil não reconhece o genocídio armênio. Porém, uma resolução do Senado de 2015 reconheceu o termo. A polêmica à época fez o governo turco convocar o embaixador do país no Brasil para explicações.
Motivações para o massacre
A questão armênia é bem anterior aos massacres de 1915 — essa população se dividia entre os impérios Russo e Otomano, na região do Cáucaso, já desde o século XVI. Em 1895, uma forte repressão a um movimento nacionalista de armênios no Império Otomano deixou entre 100 mil e 300 mil mortos.
Em outubro de 1914, o Império Otomano entrou na Primeira Guerra Mundial, ao lado de Alemanha e Áustria-Hungria. Quando o Império sofreu grandes perdas nos combates que afetaram as províncias armênias, as autoridades responsabilizaram os armênios e lançaram uma campanha propagandística que os classificava de inimigo interno.
Em 24 de abril de 1915, milhares de armênios suspeitos de sentimentos nacionalistas hostis ao Império foram detidos. A maioria deles foi executada posteriormente ou deportada. A data é, desde então, para os armênios de todo o mundo, o dia de relembrar o genocídio armênio.
Impasse com a Turquia
Ao declarar reconhecimento do genocídio armênio, Biden se coloca em uma posição controversa com a Turquia — aliada militar dos Estados Unidos pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Segundo agências de notícias, o democrata já havia avisado sobre a decisão ao presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, durante reunião na sexta-feira.
Em entrevista à emissora HaberTurk no início da semana, o ministro das Relações Exteriores da Turquia, Mevlut Cavusoglu, disse que o país “não estava preocupado com qualquer decisão que Biden poderia tomar”, mas admitiu que o governo turco não receberia bem um reconhecimento de genocídio.
“Se os EUA quiserem piorar nossas relações, é uma decisão deles”, disse Cavusoglu.
No ano passado, o então pré-candidato a presidente Biden havia expressado o desejo de reconhecer o massacres de armênios como genocídio. “Silêncio é cumplicidade”, disse, na ocasião. O Ministério das Relações Exteriores da Turquia antecipou à época que uma declaração de reconhecimento da questão armênia como genocídio “danificaria” os laços EUA-Turquia.
A relação entre os EUA e Turquia, sobretudo no contexto da Otan, explica em parte por que outros governos relutavam em reconhecer o massacre de armênios como genocídio. Em 2019, a Câmara dos Representantes aprovou esse reconhecimento.
Mesmo com a medida tendo caráter apenas simbólico — os deputados, sozinhos, não tinham essa prerrogativa —, o governo turco criticou frontalmente a decisão e disse, à época, que a declaração feria os acordos entre os dois países no âmbito da Otan.
Conflito no Cáucaso
O reconhecimento do assassinato em massa de armênios como genocídio pelo presidente dos EUA também ocorre em um momento de crise na região do Cáucaso. A Armênia e o Azerbaijão, ambas ex-URSS, retomaram os conflitos armados pela região separatista de Nagorno-Karabakh, também chamada de Artsakh.
Nagorno-Karabakh é uma região de maioria armênia dentro do território internacionalmente reconhecido como parte do Azerbaijão. A disputa pelo controle da área se intensificou no fim da década de 1980, junto ao início do esfacelamento da União Soviética, até virar uma guerra que matou ao menos 30 mil pessoas até 1994.
Os confrontos armados foram retomados com intensidade entre setembro e outubro de 2020, quando as duas partes se acusaram mutualmente de agressão. Os dois países chegaram a um cessar-fogo mediado pela Rússia em novembro, e armênios moradores de Nagorno-Karabakh retornaram às suas casas. O saldo, porém, foi alto: ao menos 2,3 mil pessoas morreram nos conflitos, segundo contagem de militares armênios.
Resgatista e cão buscam sobreviventes no atingido por explosão de foguete durante o conflito na região separatista de Nagorno-Karabakh, na cidade de Ganja, Azerbaijão, em 11 de outubro — Foto: Umit Bektas/Reuters
Os EUA se envolveram pouco na crise, mas a Turquia apoiou militarmente o Azerbaijão — cultural e etnicamente, o povo azeri é muito próximo dos turcos.
A Armênia, do outro lado, se viu em um problema político — em parte, porque a opinião pública entendeu que o primeiro-ministro Nikol Pashinian cedeu demais ao Azerbaijão. O premiê pediu renúncia e ficará no cargo até as próximas eleições, previstas para junho.