Cresce uso de opioides no Brasil e prescrição inadequada leva pacientes a vício

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A prescrição inadequada de analgésicos opioides para o controle da dor e o aumento de pacientes dependentes desses narcóticos têm preocupado os médicos e gerado um temor de que o Brasil possa a enfrentar uma “epidemia” de abuso dessas substâncias como as registradas nos Estados Unidos nos últimos anos.

Alguns estudos já vêm apontando esse risco. Em 2019, uma pesquisa sobre drogas da Fiocruz mostrou que 4,4 milhões de brasileiros já fizeram uso ilegal (sem prescrição médica) de algum opiáceo -ou 2,9% da população. O número é três vezes superior ao uso de crack, experimentado por 0,9% da população ao longo da vida.

Um outro estudo de 2018, publicado no American Journal of Public Health, acendeu o alerta para o aumento do uso legal desses medicamentos. Em seis anos, a venda prescrita de analgésicos à base de ópio cresceu 465%, segundo dados da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

A codeína, considerada um opioide leve e geralmente indicado para dores moderadas, responde por mais de 90% das prescrições.

Na avaliação de médicos, o consumo desses fármacos aumentou na pandemia de Covid-19, mas os números brasileiros ainda não estão fechados. Nos EUA, as mortes por overdose, a maioria por opioides, ultrapassaram a marca das 100 mil entre abril de 2020 e abril de 2021, um aumento de 28,6% em relação ao mesmo período anterior.

A pedido da Folha, a Anvisa compilou dados do uso de opioides até junho de 2021. No total, em 2020 foram comercializadas 21.785.015 embalagens de analgésicos narcóticos. Nos seis primeiros meses de 2021, foram 14.469.642.

Assim, a grosso modo, se a quantidade usada no segundo semestre refletir o primeiro, o ano terá fechado com uma alta de cerca de 33% em relação a 2020.
Para alguns tipos de analgésicos narcóticos, o aumento já é claro. No caso do fosfato de codeína (associado a substâncias como o paracetamol), houve uma alta de 52% (de 824.020 embalagens para 1.255.298).

O uso da metadona e da oxicodona, por exemplo, apenas no primeiro semestre de 2021 já foi 29% maior do que em todo o ano de 2020 -699.520 caixas contra 543.081. A venda no Brasil da oxicodona é controlada da mesma forma que os antibióticos (tarja vermelha). Já a metadona tem tarja preta.

Médicos especialistas no tratamento de dor e que atuam mas emergências dos hospitais relatam aumento de pacientes que os procuram já dependentes de analgésicos opioides, como a codeína, solicitando novas receitas.

“Muitas pessoas estão recebendo opioide de forma irresponsável por falta de diagnóstico e tratamento correto”, diz a anestesiologista Silvia Tahamtani, especialista em dor e em cuidados paliativos do Icesp (Instituto do Câncer do Estado de São Paulo).
Na clínica privada onde atende doentes não oncológicos, ela conta que, de cada dez pacientes com sintomas de dependência de opioides, oito não tinham indicação para ter iniciado o uso da medicação. Se não conseguem a renovação da receita, começam a trocar de médicos.

“A gente chama de ‘doctor shopping’. Ele vai num médico, vai no outro e em cada um fala que perdeu a receita, que o cachorro comeu, que a chuva molhou e ele precisa de nova receita”, relata a médica Angela Sousa, também anestesiologista e especialista em dor do Icesp.

Em geral, a prescrição é considerada inadequada quando a dor pode ser controlada por outros remédios e terapias ou porque o paciente já tinha alguma predisposição à dependência. No Brasil, 4 em cada 10 pessoas sofrem de alguma dor crônica -que persiste por mais de três meses.

Um exemplo corriqueiro, segundo ela, é o tratamento da dor lombar, uma das mais frequentes na população brasileira. “Às vezes, é uma dor muscular, porque a pessoa trabalha sentada muito tempo, porque faz esforço excessivo ou porque está obesa. Deveria estar fazendo exercícios físicos, alongamento, mas quer remédio para ficar sem dor.”

A enxaqueca ou a cefaleia, muitas vezes causada por tensão, e a fibromialgia são outras situações em que os analgésicos opioides têm sido receitados frequentemente.
“Esses pacientes deveriam estar fazendo reabilitação, exercícios físicos, infiltração do ponto-gatilho [pequenos nódulos localizados na fibra muscular], cuidando da saúde mental, ou fazendo uso de outros medicamentos, mas não os opioides”, reforça Sousa.

Alguns hospitais brasileiros também detectaram o abuso na indicação dessas substâncias nos prontos-socorros e estão criando programas para evitar desvios e educar profissionais da saúde sobre a prescrição de opioides, além da adoção de protocolos para identificar pacientes com risco de dependência.

A UnitedHealth Group Brasil, por exemplo, lançou em novembro do ano passado um protocolo para tratamento da cefaleia. Entre outros objetivos, o programa visa reduzir a prescrição de opioides nas emergências nos hospitais da rede, que hoje varia entre 5% e 30%.

“Vemos com frequência os opioides sendo prescritos de forma equivocada para pacientes com essa condição”, afirmou o neurologista Marcelo Calderaro no podcast “Conversa de Médico”, do site ao Medscape, especializado em educação e informações médicas.

Segundo ele, existe uma confusão sobre o tratamento da dor aguda associada a doenças como a litíase renal [cólica renal], em que o uso de opioides é indicado, e da dor associada a uma doença crônica, como a enxaqueca.

A psiquiatra Lisia von Diemen, professora da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), afirma que nos últimos três anos houve um aumento de pedidos de consultoria por suspeita de abuso de opioides em hospitais. Em 2016, a média era de um a cada três meses, enquanto a partir de 2018 passou para um caso por semana.
A situação também tem levado médicos a solicitar pareceres nos conselhos regionais de medicina sobre o que fazer em situações em que pacientes procuram pronto-atendimento rotineiramente solicitando analgésicos narcóticos.

“Qual o limiar para configurar-se conivência médica a prescrição da medicação solicitada, quando o mesmo alega ser única que efetivamente melhora sua dor, mas que notoriamente caracteriza a dependência ou abuso por parte dos pacientes frente a tal substância?”, questionou um médico ao Conselho de Medicina do Mato Grosso do Sul.
O conselheiro respondeu que “caso seja explícita clinicamente a dependência ou abuso por parte do paciente, o médico, ao administrar o analgésico opioide, automaticamente está sendo conivente, quando não houver indicação clínica para seu uso”.

De acordo com a OMS (Organização Mundial da Saúde), o tratamento da dor deve respeitar um escalonamento (degraus da escada analgésica), que inclui analgésicos, anti-inflamatórios, fármacos adjuvantes e opioides (fracos e fortes).

De acordo com Sousa, é comum a estratégia de pacientes que vão até o pronto-socorro e exageram na intensidade da dor para conseguir opioides mais fortes. “Ele diz que está com dor insuportável. Nem sempre é fácil para o médico do PS avaliar o perfil desse paciente. Às vezes, a gente leva dois, três dias para entender que é um caso difícil, separar o que é dor e o que é vício.”

Ela conta, por exemplo, o caso de um paciente que já tinha operado oito vezes a coluna e se tornou dependente de opioide, quando, na verdade, nem tinha indicação para ter iniciado na medicação. “Era uma pessoa com transtorno de personalidade. Precisa estar sob cuidados de um psiquiatra.”

Segundo Tahamtani, os pacientes internados também correm o risco de dependência dos analgésicos opioides, mas, nesse caso, eles são o melhor tratamento para a controlar as dores do câncer.

A diferença, explica, é que nessas situações o vício pode ser contornável por meio de protocolos clínicos e outras ferramentas. “O vício é uma doença que precisa ser tratada de forma multidisciplinar, com ajuda, por exemplo, do psiquiatra.”

Durante a pandemia, a médica observou que os pacientes oncológicos recorreram mais aos opioides devido à piora da saúde mental. “Teve o isolamento, o estresse, o medo da morte por Covid. O medo é um fator de descontrole, desencadeia mais dor e mais consumo”, diz ela.

Após passar por uma cirurgia para extirpar um câncer no reto no início de 2021, o garçom Marcelo, 49, de São Paulo, iniciou o uso da metadona, praticamente idêntica nas suas propriedades à morfina, agindo nos mesmos receptores e com os mesmos efeitos.

Nos sete meses em que ficou internado e usando a medicação na veia, o seu organismo desenvolveu tolerância ao opiáceo. Ele conta que passou a precisar de dosagens mais frequentes para sentir o mesmo alívio. Antes do câncer, Marcelo foi dependente de cocaína e crack durante 20 anos.

O garçom diz que chegou a brigar no hospital por mais metadona. “Quando chegava a hora de tomar o remédio, eu ia lá no posto de enfermagem pressionar. Teve um tempo que tomava de seis e em seis horas. Depois, era de quatro em quatro horas.”

Assim que sentia o medicamento entrando na veio, ele conta que sentia “uma brisa boa”, o que pode ser descrito como relaxamento muscular, sensação de bem-estar que mistura torpor e euforia. Já a falta da substância produz sintomas da abstinência: taquicardia, hipertensão, sudorese, diarreia, arrepios, dores musculares e insônia.

Depois da alta, Marcelo começou a utilizar a metadona oral e, com a ajuda da equipe de dor do hospital, conseguiu ir estendendo os intervalos entre as doses. Atualmente, usa a medicação uma vez por dia. “Mas não consigo ficar um dia sem ela. Já tentei, mas fico muito nervoso, não consigo dormir.”

Entenda o que são os opioides e os riscos Medicamentos derivados da papoula -planta que também é a base para a produção do ópio. Eles estimulam receptores no cérebro e geram um poderoso alívio da dor. Além disso, reduzem a ansiedade e a depressão que costumam acompanhar episódios de dor intensa.

Produzem também uma sensação de euforia, são altamente viciantes e podem levar a mortes por overdoses, além de outros danos. Por isso, há o perigo de que sejam usados de forma irregular.

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