RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) — Em um ano de pandemia, a Covid-19 já matou mais gente do que o HIV em quase quatro décadas no Brasil. A letalidade foi superada nesta terça (16), quando as vítimas de coronavírus chegaram a 282.127. As mortes por Aids entre 1980 e 2019, no placar disponibilizado pelo Ministério da Saúde, são 281.156.
Ainda não há dados atualizados de 2020 e 2021 nesse balanço. De 2008 para cá, a média de vítimas da Aids tem sido relativamente estável. Em 2019, foram 10,5 mil.
É provável, portanto, que a soma dessas mortes ainda seja um pouco maior, beirando os 300 mil. Mas a chance da pandemia ultrapassar já nos próximos dias a mortandade provocada pelo HIV é certa.
Para entender como chegamos a esse ponto, primeiro é preciso entender as naturezas distintas das duas viroses, diz Margareth Dalcomo, pneumologista e pesquisadora da Fiocruz.
A Covid é uma virose aguda, a Aids, crônica — e para doenças assim não há vacinas, embora remédios antivirais funcionem melhor.
“Isso explica por que os tratamentos medicamentosos [contra o coronavírus] são tão frustrantes até agora, como sói ser nas demais viroses”, afirma Dalcomo. “A Aids hoje é uma doença crônica com a qual a pessoa vive perfeitamente, vida normal.”
O coronavírus que se alastrou pelo mundo em 2020 tem três vezes o tamanho do vírus do HIV e duas vezes o da influenza. Produz muitas proteínas, e “essa composição o torna muito especial”, diz a pesquisadora. “Não é grandemente mutante, mas, como se trata de epidemia muito longa, foi capaz de centenas de mutações. Não é a natureza do vírus, foi a maneira como ele se disseminou.”
Com as viroses agudas, como sarampo, caxumba e agora a Covid, a melhor estratégia é uma boa campanha de vacinação, segundo a pneumologista. O Brasil ainda patina nessa área.
Professor do Departamento de Medicina Preventiva da USP, André Mota aponta que toda pandemia possui um caminho epidemiológico: identificação, velocidade de contágio, ações de controle e prevenção. “A Aids teve, no caso brasileiro, rapidamente uma ação de políticas públicas voltadas para cada um desses elementos. Mesmo com todo o duro percurso, quando chegaram os retrovirais em 1996 já havia todo um caminho percorrido.”
No caso da Covid-19, a rapidez de contágio e letalidade exigia políticas públicas igualmente ligeiras, “coordenadas centralmente pelo governo federal, estadual e municipal”, diz Mota. “Mas não houve.”
A crise sanitária que se desenhava era zero discreta, mas não ganhou a devida atenção, afirma o professor. “Quiseram trilhar pela ausência de ações tecnológicas conhecidas e que poderiam fazer toda a diferença. O resultado foi o colapso nacional do sistema hospitalar e de saúde em várias instâncias, além de uma população num tiroteio de informações contraditórias.”
Para Mota, o quadro se agravou ainda mais com o déficit de medidas preventivas. “Ônibus, trens e metros lotados são uma ponta deste iceberg. Finalmente, restou como saída a vacinação em massa, que não ocorreu, porque não houve vontade política. Perdemos a batalha e grande parte da guerra. Não há mais tempo pois, as mortes já foram registradas. A ação atual, na minha visão, é a de redução de danos.”
Thomas Conti, cientista de dados e professor do Insper, destacou no Twitter a ultrapassagem da Covid como epidemia mais mortífera no país. “Nunca foi uma gripe”, disse, em alusão à fala do presidente Jair Bolsonaro de que a doença seria apenas uma “gripezinha”.
“Infelizmente, o movimento foi quase sempre o contrário”, diz Mota, da Faculdade de Medicina da USP. “A comunicação que dizia ser uma gripezinha, a promoção de aglomeração e não uso de máscara, a indicação de remédios sem comprovação para a doença, nenhuma política vacinal de fato e, finalmente, toda uma retórica que dizia ser uma atitude de maricas, negando o impacto das mortes. Enfim, a maior tragédia sanitária da história do país.”